Death on the Nile / Morte no Nilo

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– Vaidade? Como motivo para um assassinato? – perguntou a Sra. Allerton, duvidosa.
– Os motivos dos crimes são, às vezes, muito triviais, Madame.
– Quais os mas frequentes?
– O dinheiro. Isto é, para obtê-lo mais rapidamente. Em seguida, a vingança… o amor, e a filantropia.
– Monsieur Poirot! [Agatha Christie, Morte no Nilo, trad. Newton Goldman. Rio de Janeiro: Altaya, n/d]

A terceira regra de S. S. Van Dine para escrever histórias de detetives proclama que “Não deve haver interesse amoroso no entrecho. A questão a ser deslindada é a de levar o criminoso ao tribunal e não a de levar um casal ao altar.”

Agatha Christie obedece a maioria das vinte regras estabelecidas por Van Dine em 1928 na maior parte das vezes, mas a terceira regra é a que ela quebra mais constantemente desde O Misterioso Caso de Styles, seu primeiro romance policial. Hercule Poirot, o detetive belga que ela criou, é um solteirão, sim, porém um solteirão pronto a reunir maridos e esposas afastados pela suspeita ou mesmo unir jovens enamorados no decorrer das investigações. Até o casamento do Capitão Arthur Hastings foi arranjado por Poirot em Assassinato no Campo de Golfe!

A escritora inglesa não aprovava o amor excessivo, entretanto. Manifestações muito efusivas de afeto eram creditadas a personagens de sangue latino e devidamente ridicularizadas, e mais de uma vez ela expôs a condição trágica da mulher que idolatra o marido, quase sempre sem retribuição. Para ela, um homem que seja o alvo desse amor se sente aprisionado, sufocado. “Um que ama, um que se deixa ser amado”, como diz Poirot em Morte no Nilo [“Un qui aime et un qui se laisse aimer“].

Neste livro publicado pela primeira vez em 1937 Christie quebrou ainda a regra n. 9: “Cada história deve ter unicamente um detetive”. Além de Hercule Porot, o Coronel Johhny Race do Serviço Secreto Britânico participa das investigações. Essa é a segunda vez que se encontram, a primeira foi em Cartas na Mesa [em que também participaram Ariadne Oliver e o Superintendente Battle].

Eu tinha dezessete anos de idade — o Cairo, como Cairo, não tinha para mim o menor significado: as moças entre os dezessete e os dezoito anos raramente pensam em outro assunto que não seja os jovens da mesma idade, coisa, aliás, muito certa. [Agatha Christie, Autobiografia, trad. Maria Helena Trigueiros. São Paulo: Círculo do Livro, 1989]

O templo de Abu Simbel no Egito

Agatha Christie estava familiarizada com o Egito desde a adolescência. Foi lá que ela passou a sua temporada de debutante em 1907, onde superou a timidez e “aprendeu a se comportar”, como diz em sua autobiografia. A autora só foi interessar-se pelos monumentos e locais históricos do Egito vinte anos depois, e ela certamente fez-lhes justiça neste livro.

A trama investiga o assassinato de Linnet Ridgeway durante sua lua-de-mel num cruzeiro pelo Rio Nilo. Linnet é jovem, bonita, rica e inteligente; para alguns, tantos atributos numa só pessoa é algo imperdoável. Para coroar, ela casa-se com o homem que deseja, o noivo de sua mulher amiga.

Jacqueline de Bellefort não se conforma por perder Simon Doyle para Linnet e passa a seguir o casal pelo mundo, mas não é a única a bordo do vapor S. S. Karnak com motivos para matá-la. A Poirot e Race cabe descobrir quem são, quais os motivos e as oportunidades dos demais passageiros: um arqueólogo italiano; uma dama arruinada e o filho dândi; uma aristocrata esnobe, sua enfermeira e uma prima empobrecida, um psiquiatra austríaco; o curador norte-americano da falecida; um jovem advogado inglês; a criada francesa da vítima; um jovem comunista que desdenha a burguesia ociosa a viajar num cruzeiro pelo Nilo no mesmo navio que ele. E a tripulação, pode ser descartada de suspeita?

Curiosidade: o título do romance que a personagem Salome Otterbourne pretende escrever é o mesmo título do primeiro livro que Agatha Christie enviou para ser analisado pelo crítico literário Eden Philpotts.

An idea came to her. She remembered seeing a beautiful young girl in a hotel in Cairo when she was visiting Egypt with Clara. The girl was always with two men, one on each side of her. One day, Agatha heard someone say, “That girl will have to decide between them some time.”
It was all that Agatha needed for an idea, and she began writing. It was not a detective novel. It was the story of a young girl who lived in Cairo, and it was called Snow Upon the Desert. [John Escott, Agatha Christie, Woman of Mystery. Oxford University Press, 2000.]

Ela teve uma ideia. Lembrou-se de ter visto uma linda jovem num hotel no Cairo quando visitou o Egito com Clara. A garota estava sempre com dois homens, um de cada lado. Um dia, Agatha uviu alguém dizer: “Aquela garota terá de decidir entre eles um dia.”
Foi tudo o que Agatha precisava para uma ideia, e ela começou a escrever. Não era uma história de detetive. Era a história de uma jovem que vivia no Cairo, e era chamada Neve Sobre O Deserto. [tradução livre]

A jovem Agatha Christie (foto sem data)

Death on the Nile / Morte no Nilo é também o título de um conto do livro Parker Pyne Investigates / O Detetive Parker Pyne [1934], mas não tem nenhuma relação com o romance.

Neste romance, Poirot realiza um imenso exercício mental, como ele explica mais à frente: “Acha que estou perdendo tempo? Me divertindo? Não é bem assim. Uma vez segui profissionalmente uma expedição arqueológica, e aprendi muito. Durante uma escavação, quando se descobre uma peça, primeiro limpa-se cuidadosamente em volta. Retira-se a terra, raspam-se certos lugares com uma faca até finalmente chegar-se ao objeto. Só então é exibida e fotografada a peça, livre de impurezas e imperfeições. É o que estou tentando fazer: limpar o supérfluo para podermos ver a verdade.”

Morte Sobre O Nilo, 1978

Morte Sobre O Nilo, 1978

Death on the Nile / Morte Sobre O Nilo

Em 1978, os mesmos produtores de Assassinato no Expresso do Oriente [1974] lançaram a adaptação cinematográfica mais famosa do livro. Albert Finney recusou o convite para repetir o papel de Poirot quando soube que as filmagens aconteceriam todas em locação: ele sofreu muito com a maquiagem e as próteses para engordar em Orient Express, que foi filmado em estúdio, e o clima quente do Egito não o animou a repetir a experiência. Peter Ustinov então tomou seu lugar.

Peter Ustinov: My biggest reservations always were whether I would be able to do justice to M. Poirot’s high standard of grooming. Since he is essentially immaculate in his person at all times, and I lean toward untidiness, creased garments and a general lack of sartorial elegance with no effort whatsoever, there were certain major differences between us that needed to be reckoned with. [Dick Riley & Pam McAllister, The Bedside, Bathtub & Armchar Companion to Agatha Christie. 2nd Edition. London: Continuum, 2001]

Minhas maiores reservas sempre foram se eu seria capaz de fazer justiça ao elevado padrão de cuidados com a aparência de Poirot. Considerando-se que ele é uma pessoa basicamente impecável o tempo todo, e eu me inclino ao desarranjo, roupas amarrotadas e a uma falta geral de elegância de alfaiate sem nenhum esforço, há algumas grandes diferenças entre nós que se devem levar em conta. [tradução livre]

A direção foi de John Guillermin [King Kong 1970] com roteiro de Anthony Shaffer. Shaffer também adaptou os roteiros de Morte na Praia e Encontro com a Morte nos anos 1980.  Angela Lansbury, que interpreta Salome Otterbourne, participou da adaptação cinematográfica de outro livro de Agatha Christie no papel de Miss Jane Marple em A Maldição do Espelho, mas – como curiosidade – o elenco de Morte Sobre O Nilo tem também Sam Wanamaker, pai da atriz Zoe Wanamaker. Zoe interpreta uma personagem recorrente na série Agatha Christie’s Poirot, a escritora Ariadne Oliver, amiga do personagem de David Suchet. O filme venceu o Oscar e o BAFTA de Melhor Figurino e o National Board Review por Atriz Coadjuvante [Angela Lansbury].

O roteiro é muito pouco fiel ao livro: personagens e situações foram omitidos, alguns desenlaces alterados e não vamos esquecer a opção controversa do ator principal: Ustinov é um grande ator, mas pouco parecido com Hercule Poirot. Mesmo assim, o filme tem qualidades técnicas e artísticas que bastem para recomendá-lo, embora eu o classifique mais no gênero comédia do que no policial ou suspense.

O DVD lançado no Brasil pela Universal e Studio Canal não oferece nenhum material extra nem opção de legendas em inglês, apenas português e espanhol. A edição que eu tenho está esgotada [DVD simples], mas há uma edição em caixa contendo Assassinato no Expresso Oriente de Sidney Lumet e Morte Sobre O Nilo ainda disponível em algumas lojas.

Death on the Nile, 2004

Death on the Nile, 2004

Agatha Christie’s Poirot: Death on the Nile

A adaptação televisiva de 2004 [temporada 9, episódio 3], com direção de Andy Wilson e roteiro de Kevin Elyot, é mais fiel ao livro do que a adaptação cinematográfica de 1978. Também foi gravado em locação e usou o mesmo navio do filme – embora a decoração e os ângulos de câmera deem a impressão de que é um barco maior e mais espaçoso.

O elenco não é tão estrelado quanto o do filme e é um tanto mais jovem também, mas um problema que eu tenho percebido nas adaptações da série da LWT é que os atores da mesma faixa etária são muito parecidos fisicamente – quando não são, o figurino e a maquiagem os tornam parecidos. Exceto pela personagem de Emily Blunt, que é loura, eu demorei até conseguir identificar Joanna Southwood, Louise Bourget, Jacqueline de Bellefort e até Cornelia Robson, que no livro é descrita como gordinha. O mesmo problema que enfrentei com o elenco de Orient Express, Roger Ackroyd, etc.

Agatha Christie diz que entre todos os seus livros de viagens, este é o seu preferido: “Os três personagens… me parecem reais e vivos.” [Jefrrey Feinman, O Mundo Misterioso de Agatha Christie, trad. Eneida Vieira Santos. Rio de Janeiro: Record, 1989]

Um outro problema é o escancaramento de situações que são apenas sugeridas nos livros: o episódio abre com um casal no meio do intercurso carnal, e a seguir uma personagem é vista consumindo cocaína sem maiores pudores. A vulgarização choca e afasta o espectador acostumado com o caráter familiar dos livros da Dama do Crime; além disso, esse pretenso ar descolado e moderninho não traz nenhuma vantagem artística nem acrescenta contexto ao roteiro, é um acréscimo gratuito e desnecessário que se repete ainda ao final do episódio com a insinuação de um desvio sexual de um ou mais personagens.

Se isso não incomoda o espectador, sobra uma adaptação fiel ao livro no que se refere aos eventos e personagens, mas começando a se aprofundar na psique de Poirot. Ele não é mais apenas um personagem cômico com seu sotaque e manias, e sim alguém que já “perdeu muita coisa na vida”, conforme  o próprio personagem diz a certa altura.

Além disso, confesso que achei a trilha sonora mais condizente com a atmosfera que imaginei ao ler o livro do que a trilha composta por Nino Rota para o filme de 1978, e sempre acho que a Mia Farrow desperta a impressão que ela pertence a um quarto acolchoado branco e a uma jaqueta de restrição, mas isso é uma opinião pessoal, claro.

Hercule Poirot: Do not open your heart to evil, mademoiselle. If you do there will be no turning back.

Não abra seu coração para o mal, mademoiselle. Se fizer isto, não haverá volta. [tradução livre]

Infelizmente, o cruzeiro pelo Nilo do modo como Agatha Christie descreveu não é mais possível desde a construção da represa de Assuã em 1960, mas ainda existe um navio a vapor que navega entre Assuã e Luxor – pelo menos segundo esse relato de viagem publicado no The Times em 2008 – , o SS Sudan. O repórter Marcel Berlins assegura que não há mais assassinatos no cruzeiro.

Comparação de elenco

Personagem 1978 2004
Hercule Poirot Peter Ustinov David Suchet
Coronel Johnny Race David Niven James Fox
Linnet Ridgeway Lois Chiles Emily Blunt
Jacqueline de Bellefort Mia Farrow Emma Malin
Simon Doyle Simon MacCorkindale J. J. Feild
Andrew Pennington George Kennedy David Soul
Louise Bougert Jane Birkin Félicité Du Jeu
Mrs. Van Schuyler Bette Davis Judy Parfitt
Miss Bowers Maggie Smith não existe
Cornelia Robson não existe Daisy Donovan
Dr. Bessner Jack Warden Steve Pemberton
Mr. Ferguson Jon Finch Alastair Mackenzie
Mrs. Salome Otterbourne Angela Lansbury Frances de la Tour
Rosalie Otterbourne Olivia Hussey Zoe Telford
Tim Allerton não existe Daniel Lapaine
Mrs. Allerton não existe Barbara Flynn
Joanna Southwood não existe Elodie Kendall
Gerente do Karnak L. S. Johar George Yiasoumi
Rockford Sam Wanamaker não existe

Bette Davis, Maggie Smith & Angela Lansbury [1978]


Link http://www.youtube.com/watch?v=u-_-xxP3Dz0

JJ Feild – Death on the Nile Behind the Scenes


Link http://www.youtube.com/watch?v=TsuH_MmivXg

Adaptações em outras mídias
Peça de teatro com o título Murder on the Nile e depois Hidden Horizon
Peça de rádio transmitida pela BBC 4, com John Moffat no papel de Poirot
Jogo para computador
Audiolivro com narração de David Suchet
Graphic novel francesa com roteiro de Fraçois Riviére e arte de Jean-François Miniac [Solidor], publicada originalmente em 1996. A editora L&PM lançou a tradução brasileira em 2010.

Para saber mais
Agatha Christie site oficial
Verbete na Wikipedia

Este post faz parte das comemorações pelos 120 anos de nascimento de Agatha Christie.

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18 comentários sobre “Death on the Nile / Morte no Nilo

  1. Morte no Nilo é um dos meus livros favoritos da tia Agatha. Ele e outros dois: Assassinato no Expresso do Oriente e Cai o Pano…

    Gostei do post, fiquei com vontade de assistir tudo… oh, céus, onde arranjar tempo?

  2. Impecável! Como sempre, titia Batata fazendo uma resenha completíssima delivro, filme, série e tudo o mais. Gosto dos seus comentários durante o texto, sempre pertinentes.

    Imperdoável, não li ainda esse livro, mas adorei o filme de 1978. Não se preocupe, vou dar um jeito nisso rapidinho.

    Beijos!

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